CARIDADE X JUSTIÇA
GUERRA JUNQUEIRO
(Transcrição incompleta,
excerto da obra “Velhice do
Padre Eterno”)
No topo do Calvário erguia-se
uma cruz.
E pregada sobre ela o corpo de
Jesus.
Noite sinistra e má. Nuvens
esverdeadas
Fugiam pelo céu como grandes manadas
De búfalos. A Lua, ensangüentada
e fria,
Triste, como um soluço imenso de
Maria,
Lançava sobre a paz das coisas
naturais
A merencória luz feita de
brancos ais.
As árvores, que outrora nos dias
de calor,
Abrigaram Jesus cheio de mágoa e
dor
Sonhavam, na mudez hercúlea dos
heróis.
Deixaram de cantar todos os
rouxinóis.
Um silêncio pesado amortalhava o
mundo,
Unicamente ao longe, o velho mar
profundo
Decantava -chorando-seus salmos
de agonia.
Jesus, cheio de dor, quase a
expirar, sorria.
Os abutres cruéis pairavam
lentamente
A farejar-lhe o corpo. Às vezes,
de repente,
Uma nuvem toldava a face do luar
E um clarão de gangrena,
estranho, singular,
Lançava sobre a cruz uns tons
esverdeados.
Crocitavam ao longe os corvos
esfaimados.
Mas, passando o momento a Lua,
branca e pura
Irrompia outra da grande névoa
escura
E inundavam-se então as chagas
de Jesus
Na pulverização balsâmica da
luz.
No momento em que havia a grande
escuridão
Jesus sentiu alguém
aproximar-se, então
Olhou e viu surgir no horror da
treva muda
Cobarde perfil sacrílego de
Judas.
O Traidor, contemplando o olhar
do Nazareno,
Tão cheio de desdém...tão
nobre...tão sereno,
Convulso de terror fugiu...mas
neste instante
Cortou-lhe pela frente um vulto
de gigante
Que bradou :
É chegado enfim o teu castigo!
O traidor teve medo e balbuciou “Amigo”,
Que desejas de mim ? Dizes...por
quem esperas,
Quem és tu ?...”O Remorso, um
caçador de feras!”.
0 gigante respondeu. “Eu ando a
seis mil anos
A caçar pelo mundo a alma dos tiranos,
Do traidor, do ladrão, do vil,
do celerado.
Na enormíssima jaula atrós da
expiação
Eu os trago encerrados...
E quando eu entro ali, na
horrenda escuridão,
De tigres, de leões, de abutres,
de chacais,
De rugidos de feras, de gritos
bestiais,
Tudo fica a tremer...mudo de
horror e espanto !
Caim baixa a pupila e vai
deitar-se a um canto.
E quando, em suma, algum dos
monstros quer lutar,
Azorrago-o, com a luz febril do
meu olhar,
Dando-lhe um pontapé, como num
cão mendigo.
Já sabes quem eu sou , Judas,
Anda comigo !...”
Como um preso que quer comprar o
carcereiro,
Judas, tirou do manto a bolsa do
dinheiro
Dizendo: - “Aqui tens... e
deixa-me partir”.
Houve um grande silêncio ...O
infame Escariote
Como um preso que vê a ponta de
um chicote
Tremia...
Finalmente o gigante respondeu :
“Judas, esse dinheiro... podes
guardá-lo... é teu!...”.
o ouro da traição pertence ao
traidor,
Como o riso á inocência...como o
perfume á flor.
Esse ouro é para ti o eterno
pesadelo.
Oh, guarda-o bem...que eu quero
derretê-lo,
E lançar-to depois, cáustico
vivo e ardente
Em cima da consciência...a
pútrida...a execrável...
Com ele fundirei algema inquebrantável
A grilheta que a tua esquálida memória
Trará...arrastará pelas galés da
História
Durante a eternidade ilimitada e calma.
Essa bolsa que tens é o cancro
da tua alma.
Já se agarrou a ti...ligou-se ao
criminoso,
Como a lepra nojenta ao peito do
leproso,
Como o imã ao ferro e o verme
à podridão.
Não poderás jamais largá-la de
tua mão.
É traidor, assassino, hipócrita,
perjuro.
A tua alma, lançada em cima de
um monturo
Faria nódoa !...
És tudo o que há de mais infame
e vil,
Da barriga do sapo à baba do réptil.
Sai da existência ! Pede às sombras que te acoite !
Monstro - procura a paz....Verme
- procura a noite...
Que o Sol não veja mais por um momento
O teu olhar oblíquo... O teu
perfil nojento!
Esse crime, bandido, é um crime
que profana
Todas as grandes leis da
consciência humana.
Todas as grandes leis da Vida
Universal...
Esconde-te na morte, assim como
o chacal
No seu covil...Adeus
!...Causas-me nojo e asco !
E dito isto, saiu a procurar
Pilatos.
Vinha rompendo ao longe a fresca
madrugada.
Judas, ficando só, meteu-se pela
estrada,
Caminhando ligeiro...impávido...terrível...
Como um homem que leva um fim
imprescritível,
Uma ideia qualquer... heroica...sobranceira....
De repente estacou. Havia
uma figueira
Projetando na estrada sua longa
sombra escura.
Judas, desenrolou a corda da
cintura,
Subiu acima, atou-a a um ramo
vigoroso,
Dando um laço á garganta. O seu
olhar odioso
Tinha neste momento um brilho
cristalino.
Nisto ecoou através do céu
profundo
A voz celestial de Jesus
moribundo
Que bradou :
“Traidor, concedo - te o perdão.
Além de meu carrasco és ainda
meu irmão.
Pregaste-me na cruz...é o mesmo ! ...Fica em paz.
Eu costumo esquecer o mal que alguém
me faz.
Eu tenho até prazer, bem vês, no
sacrifício.
Não te causes remorso o meu
atrós suplício.
Esses golpes cruéis....essas
horríveis dores...
As chagas para mim são outras
tantas flores...”
Judas fitou ao longe os cerros
do Calvário
E erguendo-se viril...soberbo...extraordinário
Exclamou :
Não aceito a tua compaixão.................................
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A Justiça dos bons consiste no
perdão.
Um justo não perdoa............................................
................................................e
enforcou-se !.
Vila Poeira - Janeiro l965